Bruno Doro - UOL Esporte - Pan 2011
Em São Paulo
O que um garoto normal faz na véspera de Natal? Brinca, pula e corre? Leandro Guilheiro, duas vezes medalhista olímpico e maior favorito do judô brasileiro ao ouro nos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara, não fazia nada disso. No lugar das brincadeiras, treinos sérios. Desde os 9 anos.
“Eu não tive uma infância e uma adolescência normais. Não curti, abri mão da vida que os outros jovens levavam. Passei essa época treinando de dezembro a dezembro. Não viajava de férias, treinava em véspera de Natal e de Ano Novo”, lembra o judoca.
Essa vida “meio sem graça”, porém, mostra o quanto Leandro Guilheiro é cabeça-dura quando coloca alguma coisa na cabeça. “Quando ele chegou, já dava para perceber que era diferente. Sempre falava que seria medalhista olímpico. E sempre treinou muito mais do que os outros. Se tinham dois treinos marcados, ele fazia três. Se eram quatro, aparecia cinco vezes”, lembra Ivo Nascimento, seu primeiro técnico.
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Não foram só as brincadeiras de criança que Leandro Guilheiro perdeu. Em 2007, ele se preparava para iniciar o quarto período da faculdade de direito quando descobriu que teria de assistir aulas à noite. O horário batia com os treinos. E, novamente, o lado judoca pesou mais.
"O grande problema de ser atleta de alto rendimento e fazer faculdade são as viagens. Você viaja o ano inteiro, perde prova, perde trabalho. Você não tem flexibilidade e os professores não entendem. E quando apoiam, acabam ajudando demais, cobrando de maneira diferente. Não é assim que quero me formar. Com o Direito, estava conseguindo levar, mas em 2007, o horário das aulas mudou e tive de optar pelos treinos", lembra.
A solução, para ele, foi aumentar seu ritmo de leituras. "Como não consigo ter o ensino formal, procuro o que está fora do tradicional. Aprendo línguas e, principalmente, leio. Falo inglês e francês e, no mês passado, li quatro livros durante o fim da preparação para o Pan".
E se engana quem pensa que ele fica nos livros de auto-ajuda, escolha comum entre a maioria dos atletas. "Um livro que me marcou muito foi Musashi (de Eiji Yoshikawa), a história de um samurai japonês. É um livro longo de três volumes, que tem muito a ver com a minha vida. Mas Don Quixote (de Miguel de Cervantes) também marcou muito. E 100 anos de Solidão (de Gabriel Garcia Marques)".
A parceria entre os dois foi dez anos até os 22, em Atenas-2004, na primeira medalha olímpica, de bronze. “Foi uma união muito legal. O Ivo era um cara jovem, que estava com todo o gás para trabalhar, e encontrou um garoto dedicado e que tinha um objetivo muito claro”, lembra Leandro.
Nesse período, o jovem judoca passava o máximo de tempo que conseguia no tatame. “Não importava se tinha aula ou não. Ele batia na porta da academia e ficávamos lá, treinando. Eu e ele”, diz Ivo. “Uma das coisas que mais me marcaram com o Leandro foi a dedicação. Eu lembro que, aos domingos, quando não tinha competição, ele sempre estava na academia, treinando com o Ivo”, completa Rogério Sampaio, ouro nas Olimpíadas de 1992.
O campeão olímpico, aliás, entrou na história de Guilheiro pouco depois. Ele e Nascimento fizeram uma parceria e Rogério passou a treinar alguns atletas, entre eles, o futuro medalhista. “Desde o início dava para ver o potencial do Leandro. Mas isso precisava ser desenvolvido. Quem trabalha com atletas de alto nível sabe que alguém com muito potencial pode ficar pelo caminho. Foi um trabalho árduo, mas que deu resultado”, fala Rogério.
O primeiro grande título desse plano de carreira para o judoca veio em 2002, quando, em Jeju, na Coreia do Sul, Guilheiro conquistou o título mundial júnior. Um ano depois, porém, também sofreu a primeira grande decepção: nas seletivas brasileiras para o Pan de Santo Domingo, foi derrotado por Luiz Camilo, o Chicão, irmão do campeão mundial Tiago Camilo.
Até hoje Chicão é o único brasileiro que deu trabalho para Guilheiro. Na época, o judoca do interior paulista era mais experiente que o campeão mundial júnior. Mesmo assim, sofreu para bater a revelação. “Desde 2000, 2001, quando o Leandro começou a despontar, sempre foi competitivo. Dava para sentir que, com o amadurecimento normal, ele iria fazer o estrago que está fazendo. Naquela época, só fazendo muita força para pará-lo”.
Um ano depois, Chicão se machucou e deixou espaço livre para Guilheiro ir a sua primeira Olimpíada. No mesmo período ele começou a lidar, também, com um dos maiores problemas de sua carreira: as lesões.
“Em 2004, ele sofreu algumas contusões e fomos administrando esses problemas. Primeiro vieram as seletivas. Falávamos: ‘vamos fazer um esforço até lá. Se passar, continuamos administrando’. Fizemos isso até ele se classificar para as Olimpíadas. Aí, não tinha mais jeito. Quando ele voltou de Atenas, com a medalha de bronze, teve de operar”, lembra Rogério Sampaio.
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A partir daí, as lesões apareceram. O ciclo olímpico de Pequim-2008 foi marcado por problemas. Após Atenas, operou o pulso e o quadril. Ao tentar voltar, porém, acelerou a recuperação e teve de operar o ombro. Em 2007, desenvolveu uma hérnia de disco no Pan do Rio, foi prata e levou a contusão até as Olimpíadas de 2008. Em Pequim, voltou a subir ao pódio contundido. No fim do dia, nem mesmo fechar a mão ele conseguia, por causa de uma nova lesão, agora no ombro.
Agora dono de duas medalhas olímpicas, foi operado mais uma vez. E teve de tomar uma decisão: ou deixava os leves, que competem com até 73kg, ou sua carreira passava a correr risco. Fez a mudança para os 81kg no fim de 2009, após fracassar no Mundial da Holanda.
Foto 1 de 26 - Luiz Camilo (branco) enfrenta Leandro Guilheiro na seletiva olímpica de Atenas-2004 (07/05/2004) Antônio Gaudério/Folhapress
“O grande problema de ficar numa categoria por muito tempo é manter esse peso. Você fica dentro da dieta, não come o que gosta, vive uma vida regrada demais. No finalzinho, em 2008, já falava que ele precisaria subir. Era isso ou parar com o judô. Esse negócio de dieta é muito chato. O cara só foca na perda de peso e esquece o que é ser atleta”, afirma Mauro Oliveira, seu técnico desde 2005.
Chicão, o rival, concorda que a troca de categoria foi importante para manter o medalhista olímpico competitivo. “Eu olho a minha carreira como exemplo. O peso foi uma das coisas que me fizeram parar de lutar. Era desgastante treinar e ter de comer como cachorro. Eu tinha um medidor de líquidos em casa, para tomar só o que podia. Eu não saia de casa para jantar. Em um dia, só podia tomar quatro ou cinco copos de água. Tudo era controlado para manter o peso. É uma rotina muito dura”.
A mudança não poderia ser mais positiva. Na nova categoria, o judoca de Santos (apesar de ter nascido em Suzano, no interior de São Paulo) entrou em uma fase inédita na carreira. Entre 2009 e 2011, subiu no pódio em todos os torneios do circuito mundial em que competiu. E ainda subiu ao pódio no Campeonato Mundial adulto, algo que não conseguiu nos 73kg: em 2010, foi vice-campeão em Tóquio e, em 2011, levou o bronze em Paris.